28 julho 2021

ana maría rodas

 

Limpiaste la esperma


Limpiaste la esperma

y te metiste a la ducha.


Diste el manotazo al testimonio

pero no al recuerdo.


Ahora

yo aquí, frustrada,

sin permiso para estarlo

debo esperar

y encender el fuego

y limpiar los muebles

y llenar de mantequilla el pan.


Tú comprarás con sucios billetes

tu capricho

pasajero


A mí me harta un poco todo esto

en que dejo de ser humana

y me transformo en trasto viejo.


Limpaste o esperma


Limpaste o esperma

e entraste no duche.


Esbofeteaste o testemunho

mas não a lembrança.


Agora

eu aqui, frustrada,

sem licença para estar assim

tenho de esperar

e acender o fogo

e limpar os móveis

e encher o pão de manteiga.


Tu comprarás com notas sujas

o teu capricho

passageiro


Estou um pouco farta disto tudo

de deixar de ser humana

e de me transformar em traste velho.


26 julho 2021

elisa palacio

 

Una niña parada con su cuerpo inclinado hacia adelante y su mano derecha apoyada en su rodilla, sosteniéndose. Tiene el pelo castaño claro con una colita de caballo. Lleva puesto un pantalón de corderoy, un suéter y zapatillas blancas.

A su lado hay un señor sentado sobre una piedra que apunta hacia la nada. Ambos miran atentamente lo mismo: una libretita que él tiene en sus manos donde dibuja algo. Están frente a un precipicio. La superficie es rocosa y escalonada en tonos de rosa.

Sus dos figuras forman un círculo. El hombre tiene una pierna cruzada en la que apoya su libreta. Sobre su cuello cuelgan, hasta abajo de su pecho, unos largavistas profesionales. Su otra pierna tiene la rodilla flexionada y el pie se apoya sobre una piedra, equilibrando su cuerpo.

A un costado y descendiendo por las rocosidades hay un bastón. Es de madera con rayas en blanco y negro. Una línea de arbustos cubre casi la totalidad del fondo que muestra, a lo lejos, una sierra azul y plana. El cielo cubierto cambia de color.


Uma menina de pé com o corpo inclinado para a frente e a mão direita apoiada no joelho, a segurar-se. Tem o cabelo castanho claro com um rabo de cavalo. Usa uma calça de bombazine, uma camisola e ténis brancos.

Ao seu lado há um senhor sentado sobre uma pedra que aponta para o nada. Ambos olham atentamente o mesmo: um bloco de notas que tem nas mãos onde desenha algo. Estão frente a um precipício. A superfície é rochosa e escalonada em tons de rosa.

As suas duas figuras formam um círculo. O homem tem uma perna cruzada onde apoia o seu bloco. No seu pescoço estão pendurados, até abaixo do seu peito, uns binóculos profissionais. Sua outra perna tem o joelho fletida e o pé apoia-se sobre uma pedra, equilibrando o seu corpo.

Ao lado e descendo pelas rochas há um bastão. É de madeira com listas em preto e branco. Uma linha de arbustos cobre quase a totalidade do fundo que mostra, ao longe, uma serra azul e plana. O céu coberto muda de cor.


24 julho 2021

pascale bouhénic

 

L’hérédité humaine


Bien arrivée à Jujurieux

Après un arrêt à Saulieu

Terre du sculpteur Pompon

Qui fut un élève de Rodin.

La patronne du restaurant

(Qui sert une cuisine bourgeoise

Comme dans les restos autrefois)

Me touche à un bizarre endroit.

A la regarder, elle est une parfaite réplique

De mon cher père

Non dans ses traits, c’est entendu

Mais dans cette manière affolée, qu’elle a de commenter le menu.



Ce qu’elle fait sans se faire prier aucunement

Prenant son temps et digressant

Ecorchant le coq, étripant l’âne

Et la façon dont elle s’emmêle les pinceaux, trop longuement

Sans flancher, me touche violemment, c’est idiot.

Je l’ai prise en sympathie pour cela

Baissant les yeux sur la nappe à carreaux

Déjà remplie de miettes

(Je meurs de faim c’est évident).

Car j’ai hérité de ces glissades, de ces cabrioles

De ces accidents brutaux, de tous ces mots qui dégringolent

A toute vitesse sur la table.



A hereditariedade humana


Chegada a Jujurieux

Após uma paragem em Saulieu

Terra do escultor Pompon

Que foi aluno de Rodin.

A dona do restaurante

(Que serve uma cozinha burguesa

Como nos velhos restaurantes)

Toca-me num sítio estranho.

Olhando para ela, é uma réplica perfeita

Do meu querido pai

Não nos seus traços, claro

Mas nesse modo agitado com que comenta o menu.


O que ela faz sem fazer rezas de nenhuma maneira

Demorando o seu tempo e digerindo

Depenando o galo, estripando a mula

E a forma como ela fica muito tempo atónita

Sem se ir abaixo, toca-me violentamente, é estúpido.

Simpatizei com ela por isso

Baixando os olhos para a toalha de mesa axadrezada

Já cheia de migalhas

(estou a morrer de fome, claro).

Porque herdei esses resvalos, essas cabriolas

Esses acidentes brutais, todas essas palavras que se estatelam

A toda a velocidade sobre a mesa.



22 julho 2021

paloma camacho arístegui

 

Huele a café y naranjas la curva de tu herida, ¿quién sabrá tocarla sin alterar su principio?

Un largo de miradas, un continuo de ecos: sigue prendida la ausencia, sigue tartamudeando la lumbre.

A tu sombra anidan las mañanas, trazas de elementos más pesados. Charco de instinto que interpretarse debe como un alquiler de recuerdos:

Es delicada la memoria.


Cheira a café e laranjas a curva da tua ferida, quem saberá tocá-la sem alterar o seu princípio?

Um longo olhar, um contínuo de ecos: continua acesa a ausência, continua o lume a gaguejar.

À tua sombra se aninham as manhãs, traços de elementos mais pesados. Poça de instinto que se deve interpretar como um aluguer de lembranças:

É delicada a memória.

20 julho 2021

martha cecilia quijano

 

Noche primigenia


Yo nací un día

que Dios estuvo enfermo,

grave.

César Vallejo.


La noche en que nací

una tormenta era mi casa.

Los rayos iluminaron el vientre de mi madre.

La luz, se hizo vida.


Esa noche, la primera de mayo

se hizo cántaro de fuego.

Las manos sabias de una partera

me trajeron al mundo.


A mi madre,

un dolor de recién parida, le alegró el alma:

Una bocanada de aire, se hizo canto.

Una niñita con rostro luna y ojos gitanos

bebe de su pecho, le hace creer de nuevo en los milagros.


En la madrugada, a la una menos cinco,

un oleaje de mar

inundó la casa.

Las tijeras de modista,

separaron mi cuerpo del suyo:

Fui poesía junto a su regazo.


La noche en que nací

mi madre le puso cerrojo a su templo

ahora, útero de cal y cemento.



Noite primordial


No dia em que nasci

Deus estava doente,

gravemente.

César Vallejo.


Na noite em que nasci

Estava a minha casa uma tormenta.

Os raios iluminaram o ventre da minha mãe.

Fez-se vida, a luz.


Essa noite, a primeira de maio

fez-se cântaro de fogo.

As mãos sábias de uma parteira

puxaram-me para o mundo.


À minha mãe,

uma dor de recém-parto, alegrou-lhe a alma:

Uma lufada de ar, se fez canto.

Uma bebé com rosto lua e olhos ciganos

bebe do seu peito, fá-la acreditar de novo em milagres.


De madrugada, à uma menos cinco,

uma ondulação de mar

inundou a casa.

As tesouras de modista,

separaram o meu corpo do seu:

Fui poesia em seu regaço.


Na noite em que nasci

a minha mãe trancou o seu templo

agora, útero de cal e cimento.


18 julho 2021

laure samama

 

Je danse seule

Au début je n’ai presque plus bougé, j’étais un animal en hibernation dans le dix-huitième arrondissement, qui se déplaçait gauchement, du lit au frigo et du frigo au lit, un animal dont l’activité principale consistait à dormir. Il dormait et ça s’agitait dans mes rêves, j’avais peur, j’avais faim, j’avais soif, j’avais amour surtout, mais je ne voulais pas le savoir. Je ne voulais pas être dérangée et les lois me protégeaient : il était écrit que personne ne viendrait. Et personne ne venait.


Danço sozinha

Ao princípio quase não me mexi, era um animal em hibernação no décimo oitavo bairro, que se deslocava sem jeito, da cama para o frigorífico e do frigorífico para a cama, um animal cuja principal atividade era dormir. Ele dormia e isso agitava os meus sonhos, tinha medo, tinha fome, tinha sede, tinha sobretudo amor, mas não queria saber. Não queria ser incomodada e as leis protegiam-me: ele tinha escrito que ninguém viria. E ninguém veio.


16 julho 2021

rosana acquaroni

 

HAY VENTANAS QUE PUEDEN HABITARSE

como se habita una ciudad.

Hay escenas que encienden una vida y vidas

que encienden una muerte

mientras duran.


Tan sólo fue un instante.

Después

aquella imagen fue quedándose atrás

y tuve la certeza

de que ella misma había consentido en su muerte.


El sacrificio es siempre

una forma de venganza.


En la noche anterior

él le había prometido llevarla a ver el mar.


La ventanilla de un tren puede contener

el mundo en un instante.


Después de golpearla

ella cayó de rodillas ante él mientras él la miraba

y su mano homicida se abría sin querer

y la piedra sangraba

se dejaba caer

se despeñaba talud abajo.


Me pregunto cómo se conocieron.

En dónde enamoraron.

Si ella sabía coser.

Si habría criaturas esperándola.


No pude decir nada.

Asistir al fragmento de la vida de otros.

Sentir la cercanía

de un cuerpo malogrado.

Ver cómo me alejaba

y mis ojos sin tiempo querían estirarse,

detenerse

comprender.


El tren seguía su curso.


(Un hombre solo que planea una muerte en campo

abierto. Alguien que casualmente miraba en ese instante

por la ventanilla de un tren y lo contempla. Eso es

todo.)



HÁ JANELAS ONDE SE PODE MORAR

como se mora uma cidade.

Há cenas que acendem uma vida e vidas

que acendem uma morte

enquanto duram.


Foi apenas um instante.

Depois aquela imagem foi ficando para trás

e tive a certeza

de que ela própria tinha consentido na sua morte.


O sacrifício é sempre

uma forma de vingança.


Na noite anterior

ele tinha-lhe prometido levá-la a ver o mar.


A janela de um comboio pode conter

o mundo num instante.


Depois de lhe bater

ela caiu de joelhos diante dele enquanto ele a olhava

e a sua mão homicida se abria sem querer

e a pedra sangrava

deixava-se cair

despenhava-se pela ladeira abaixo.


Pergunto-me como se conheceram.

Onde se apaixonaram.

Se ela sabia coser.

Se havia criaturas à sua espera.


Não consegui dizer nada.

Assistir ao fragmento da vida de outros.

Sentir a proximidade

de um corpo malogrado.

Ver como me afastava

e os meus olhos sem tempo queriam esticar-se,

deter-se,

compreender.


O comboio continuava a andar.


(Um homem sozinho que planeia uma morte em campo

aberto. Alguém que casualmente olhava nesse instante

pela janela de um comboio e o contempla. Isso é

tudo.)

14 julho 2021

teresa orbegoso

 

Abro el miedo. Mi cáncer escucha el silencio de mis órganos. Los hilos negros de la calma. Pregunto a mi cáncer. A ese Dios melancólico y persistente que me taladra. La espera de su respuesta me deja ver que las cosas no pesan. Ánimo. Crema de cúrcuma y agua de repollo para el dolor. Todos se van y yo me quedo. En mi cuarto atiende una enfermera migrante. Mi cáncer sigue escuchando atentamente el silencio de mis órganos. La enfermera escribe en su cuaderno: cuerpo mojado, leche de madre, da laespalda. Mi cáncer me mira a la distancia. Sonríe y sigue su camino hacia la ciudad de las enfermedades. Las batas blancas y las ambulancias transportan el sonido de la libélula. La ciudad de lasenfermedades contiene al amor de madre y su violencia. Junto a mi cama, en un frasco de vidrio, el lloro de los virtuosos y de los piadosos. Las cosas se terminan como nosotros. A lo lejos, la caja de inyecciones como un juguete extraviado.


Abro o medo. O meu cancro escuta o silêncio dos meus órgãos. Os fios negros da calma. Pergunto ao meu cancro. A esse Deus melancólico e persistente que me perfura. A espera da sua resposta deixa-me ver que as coisas não pesam. Força. Creme de curcuma e água de couve de repolho para a dor. Todos se vão e eu fico. No meu quarto a assistência é feita por uma enfermeira migrante. O meu cancro continua a ouvir atentamente o silêncio dos meus órgãos. A enfermeira escreve no seu caderno: corpo molhado, leite de mãe, vira as costas. O meu cancro olha-me de longe. Sorri e segue o seu caminho até à cidade das doenças. As batas brancas e as ambulâncias transportam o som da libélula. A cidade das doenças contém o amor de mãe e a sua violência. Ao pé da minha cama, num frasco de vidro, o choro dos virtuosos e dos piedosos. As coisas terminam como nós. Ao longe, a caixa de injeções como um brinquedo extraviado.


12 julho 2021

gaia ginevra giorgi

 sentiero cinque torri


avevo il respiro ingrossato

spezzato

mentre risalivamo il sentiero di pini odorosi

tra il bosco e l’ombra

che seguiva il tuo passo

di guerriero – di fuggiasco


ogni pausa s’imprimeva

nel limo dolce come nella memoria

cristallizzate le viole e ogni gemito


tra il sudore – il sale

ed il sole

tra l’incanto e la disperazione


con la schiena spenta nel fango

e con la bocca calda e bagnata

spalancata al cielo ispido d’estate


pregavo che la crosta del monte

cedesse al mio peso

e mi trattenesse da lì a sempre

ma tu avevi la quiete dei vetri

in testa la quiete che sale

dopo un gran piangere


se si faceva attenzione

dall’alto si poteva osservare

la schiuma d’ogni onda

covata dalla roccia


il rintocco delle campane

dalla cima turchese

scendeva sui nostri corpi

come una sentenza




trilha cinco torres


estava meu sopro em arquejo 

quebrado

enquanto caminhávamos pelo trilho de pinheiros cheirosos

entre a floresta e a sombra

que acompanhava os teus passos

de guerreiro – de fugitivo


cada pausa ficou inscrita

no lodo doce tal como na memória

cristalizadas as violetas e todos os gemidos


entre o suor – o sal

e o sol

entre o encantamento e o desespero


com as costas extintas na lama

e com a boca quente e molhada

escancarada para o céu espesso do verão 


supliquei que a crosta da montanha

cedesse ao meu peso

e me mantivesse ali para sempre

mas tu tinhas a impassibilidade do vidro

na cabeça a serenidade que se ergue

a seguir a um grande choro


estando com atenção

do alto era possível observar

a espuma de cada onda

aninhada pela rocha


o toque dos sinos

do cume de turquesa

descia sobre os nossos corpos

como uma sentença


10 julho 2021

perrine le querrec

En cachette


En cachette la fin du monde

En cachette gober du valium

En cachette acheter un téléphone portable

En cachette voir ma mère, ma sœur

En cachette conserver les certificats médicaux

En cachette

La robe pleine de sang le visage tuméfié les nerfs

déchirés

Ma vie entre parenthèses, entre deux gifles, deux

insultes

Vas-y menace-moi vas-y

Vas-y casse mes doigts vas-y

Vas-y achève moi vas-y

En cachette, espèrer


Às escondidas


Às escondidas o fim do mundo

Às escondidas a tomar valium

Às escondidas a comprar um telemóvel

Às escondidas ver a minha mãe, a minha irmã

Às escondidas guardar os atestados médicos

Às escondidas

O vestido cheio de sangue o rosto inchado os nervos

estraçalhados

Minha vida entre parênteses, entre bofetadas, dois

insultos

Vai em frente e ameaça-me

Parte os meus dedos

Dá cabo de mim

Às escondidas, esperar


08 julho 2021

sharon olds

 Mourning Undone


I think I had almost no mourning to do

when I was just born.  Maybe I missed

being held, close, in that musical night,

like someone slipped into a singer’s mouth for

safekeeping, or missed the cello bowels,

the gut of horse and cat and mother–

but I almost did not know that I

was missing them, my mind a field un-

scored, a moon unfootprinted.

Causes of mourning would appear, some of them

fed as they arose, feted and sated, some

pushed aside–next to some people

something walks, like a starveling, sometimes

for a lifetime.  When I think of doing the work

of my undone mourning, I think I see,

before me, in the ground, stairs appear

down into the earth–and myself, and my starveling, descending. 



Luto inconcluso


Julgo que praticamente não tinha de fazer luto

no momento de ser nascida. Talvez não tenha rececionado 

o ser abraçada, em fusão, naquela noite musical,

como alguém entrado na boca de um cantor para

se resguardar, ou perdido as vísceras do violoncelo,

as entranhas de cavalo e gato e mãe -

mas praticamente não sabia 

que me faziam falta, a minha cabeça um campo não

pontuado, uma lua sem pegada humana.

As causas de luto iriam aparecer, algumas delas

alimentadas à medida que assomavam, celebradas e saciadas,

postas de lado de certas pessoas

alguma coisa anda, como um esfomeado, às vezes

para sempre. Quando penso em fazer o trabalho

do meu luto desfeito, acho que vejo,

diante de mim, no chão, aparecem escadas

para as entranhas da terra – e eu e o meu esfomeado, descendo.


06 julho 2021

farah hallal

 

Caníbal

El cuerpo es agua derramada en la mesa, un temblor constante en estado de sitio, migajas de pan sin levadura, voz redondeada, mordisco tras otro que rehuye.

Apenas son las diez y me he comido el vientre. Voy bajando la voz como la luz de una lámpara. Sin saborear trago la carne, lamo los huesos, quiebro la taza delirante donde serviremos el cristal triturado de la copa de un árbol.

El cuerpo es la lengua rememorando su cauce, hijo pródigo que transita por la codicia de la sábana.


Canibal

O corpo é água derramada sobre a mesa, um tremor constante em estado de sítio, migalhas de pão sem levedura, voz arredondada, mordidela atrás de mordidela que se furta.

São apenas dez horas e comi o meu ventre. Vou baixando a voz como a luz de uma lâmpada. Sem saborear ingiro a carne, lambo os ossos, quebro a chávena delirante onde serviremos o vidro triturado da copa de uma árvore.

O corpo é a língua relembrando o seu leito, filho pródigo que transita pela ganância do lençol.


04 julho 2021

maría paz otero

 

Es tu cuerpo tan blanco a simple vista


Es tu cuerpo tan blanco a simple vista

que una podría, equivocada,

quedarse en la superficie. Creer en tu pureza,

venerarte en domingo con la fe

de los creyentes. Podría una

erróneamente, confundir tu torso con las dalias,

o con la leche que brota

del seno adiposo de una madre.

Sin embargo, si escarbo con empeño,

surge, como un ser entre la niebla,

el grito, el llanto, la infancia mal curada,

el murciélago, la sarna,

la muerte.



É o teu corpo tão branco a olho nu


É o teu corpo tão branco a olho nu

que se poderia, por equívoco,

ficar na superfície. Acreditar na tua pureza,

venerar-te aos domingos com a fé

dos crentes. Poder-se-ia,

em erro, confundir o teu tronco com as dálias,

ou com o leite que brota

do seio adiposo de uma mãe.

No entanto, se escavar com esforço,

surge, como um ser entre a névoa,

o grito, o pranto, a infância mal curada,

o morcego, a sarna,

a morte.




02 julho 2021

ana romano

 

Agustín


En la noche encapotada

fluctúan

borrosas formas

que generan incertidumbre


La osadía del viento

en busca de espacio

hostiga la insonoridad


En garganta de lata

el sortilegio de unas cuerdas

derraman añoranzas


Agustín

a pasos desorbitados

se acomoda en el banco de la plaza

y dispara



Agostinho


Na noite encapotada

flutuam

embaçadas formas

gerando incerteza


A ousadia do vento

em busca de espaço

fustiga a insonoridade


Em garganta de lata

o feitiço de umas cordas

derrama saudades


Agostinho

em passos desorbitados

instala-se no banco da praça

e dispara


30 junho 2021

carla badillo coronado

 

De herencias a hijas que no existen

Si algún día llego a tener una hija le diré: Todo lo que necesitas saber, pequeña, es el origen del mundo. Luego le entregaría un espejo para que se viese desnuda de pies a cabeza. Ese que resplandece frente a ti, es el imperio que te entrego; todo lo que en él habita te acompañará por siempre: células de dioses muertos, ideas recicladas, taras, sueños, ascos, miedos. Cuídalo, porque es lo único que te pertenece. Finalmente le abrazaría fuerte y pondría un martillo entre sus manos: la opción de romper, frente a mí, el reflejo de una verdad heredada.


De heranças a filhas que não existem

Se um dia tiver uma filha, dir-lhe-ei : Tudo o que precisas de saber, miúda, é a origem do mundo. A seguir entregar-lhe-ia um espelho para que se visse nua dos pés à cabeça. Aquele que resplandece diante de ti, é o império que te entrego ; tudo o que nele habita acompanhar-te-á para sempre : células de deuses mortos, ideias recicladas, taras, sonhos, nojos, medos. Cuida dele, porque é a única coisa que te pertence. Finalmente, abraçá-lo-ia com força e colocaria um martelo nas suas mãos : a opção de partir, diante de mim, o reflexo de uma verdade herdada.



28 junho 2021

luisa miñana

Amante con cigarrillo


Te deberé la vida, afirmo en voz muy baja, sin oxígeno.

Y él piensa que lo digo como una parte más de este juego amatorio que los dos nos traemos. El riesgo azuza las ganas

de ofertarle la piel en prenda. Y él recorre primero mis piernas con su boca y estruja luego mis costillas.

Te deberé la vida. Y él golpea

en el único peldaño de mi cuerpo que no me pertenece.

Por fin la muerte ablanda mi vida equivocada. Y oigo

la balacera en el cuarto de al lado. Se echa a un lado en la cama y su risa es brutal e inacabable. Ya no le teme a nada.

Llega un sms a mi teléfono. Fumo. Susurro: no podemos salir hasta mañana, hay redada. Ok, me dice, y fuma, bebe un trago, y me apunta con el mando a distancia de la televisión.


Amante com cigarro


Devo-te a vida, afirmo em voz muito baixa, sem oxigénio.

E ele pensa que eu digo isso como uma parte mais deste jogo amador que nós dois trazemos. O risco exarceba a vontade

de lhe oferecer a pele em penhor. E ele percorre primeiro as minhas pernas com a sua boca e aperta depois as minhas costelas.

Devo-te a vida. E ele bate

no único degrau do meu corpo que não me pertence.

Por fim, a morte enfraquece a minha vida enganada. E ouço

o tiroteio no quarto ao lado. Deita-se num lado da cama e o seu riso é brutal e sem fim. Já não tem medo de nada.

Chega um sms ao meu telemóvel. Fumo. Sussurro: não podemos sair até amanhã, há uma rusga. Ok, diz-me, e fuma, bebe um trago, e aponta-me com o controle remoto da televisão.