05 junho 2022

rosamary argüelles garcía

 

Actos


Escupir sangre

alivia el asco de sus manos

envueltas con la mierda aún tibia,

el olor podrido en su boca,

el sabor de sus heces en la mía,

las paredes impregnadas del espanto,

y contar hasta mil,

y contar en pesos:

ayunos, visitas al médico, miedos, y paseos,

y volver y seguir contando;

limpiar, en actos discutibles,

con el mismo hábito incorpóreo,

asumido como un arte vegetal,

pragmático, soportado,

destinado al aburrimiento de la próxima muerte.




Atos


Cuspir sangue

alivia o asco das suas mãos

embrulhadas com merda ainda morna,

o cheiro a podridão da boca,

o sabor das suas fezes na minha,

as paredes impregnadas de espanto,

e contar até mil,

e contar em moeda:

jejuns, consultas médicas, medos, e passeios,

e voltar e continuar a contagem;

limpar, em atos discutíveis,

com o mesmo hábito incorpóreo,

assumido como uma arte vegetal,

pragmática, suportada,

destinada ao aborrecimento da próxima morte.


04 junho 2022

maud joiret

 

Ça ne marche pas.

J’ai envie de traquer celle

qui réveille cerveau et tripes

avec ses mots sertis dans la magie

je veux des giclures sales

sur mes parterres fleuris

majorete mélancolie.


Ça commence à saigner

dans les bas-côtés de la city : boucherie.



Isto não funciona.

Quero caçar quem

desperta o cérebro e as entranhas

com as suas palavras cravejadas na magia

quero esguichos sujos

nos meus canteiros floridos

majorette melancólica.


Está a começar a sangrar

nas travessas da cidade : talho.


03 junho 2022

natalia garcía freire

 

Cocuán con sus casas de adobe medio hechas y vacías. Cocuán con sus calles de tierra, lodo y piedras. Los farolitos rotos donde vuelan galaxias de moscas y polillas, el olor a alcantarilla y caña pica la nariz. Hay otro olor que cuesta nombrar. Huele a carne, a carne de vaca, a piel gruesa de cerdo y orines de pájaro, huele a desquicio.

Una noche en el monasterio el párroco Santamaría empezó a aullar. Al día siguiente las gallinas pusieron huevos negros, las vacas se negaron a ser ordeñadas, cagaditas de pájaro caían sobre nosotros y juro por mamita nuestra que cuando quisimos hablar, también aullamos.

Mi corazón se dejaba penetrar por la luz. Arder era la forma más pronta de subir al cielo. El viento mecía todo eso en lo que me estaba convirtiendo. Era humo negro salvando el espacio, luz que iluminaba las sombras de la noche.

Nada en Cocuán es lo que parece. Estamos hechos de polvo y mal, como las pesadillas. Nuestro cementerio es un pantano sembrado de cruces podridas que van desapareciendo cada vez que sube el río. Ni siquiera nuestros muertos quieren quedarse con nosotros



Cocuán com as suas casas de adobe semi construídas e vazias. Cocuán com as suas ruas de terra, lama e pedras. Os pequenos faróis quebrados onde voam galáxias de moscas e traças, o cheiro de esgoto e cana pica o nariz. Há outro cheiro que é difícil momear. Cheira a carne, carne de vaca, pele grossa de porco e urina de pássaro, cheira a loucura.

Uma noite, no mosteiro, o pároco Santamaria começou a uivar. No dia seguinte as galinhas puseram ovos negros, as vacas se negaram a ser ordenhadas, cagadelas de pássaro caíam sobre nós e juro pela nossa mãezinha que quando quisemos falar, também uivámos.

O meu coração deixava-se penetrar pela luz. Arder era a forma mais rápida de subir ao céu. O vento embalava tudo isso em que estava me estava a converter. Era fumo negro criando espaço, luz que iluminava as sombras da noite.

Nada en Cocuán é o que parece. Estamos feitos de pó e mal, como os pesadelos. O nosso cemitério é um pântano cheio de cruzes podres que vão desaparecendo cada vez que o rio sobe. Nem sequer os nossos mortos querem ficar connosco.


02 junho 2022

maría sánchez-saorín

 

Distancias


A menudo en los patios

se crea una distancia entre mujeres:

una sábana blanca.

Frente a frente, las dos

alisan las arrugas sacudiéndola,

la pliegan varias veces

antes de unir sus dedos

y mirarse a los ojos un segundo.

La tarde es íntima;

en silenciosa danza,

se hacen y se deshacen las distancias.



Distâncias


Muitas vezes nos pátios

cria-se uma distância entre mulheres:

um lençol branco.


Frente a frente, as duas

alisam os vincos sacudindo-o,

dobram-no várias vezes

antes de unirem os dedos

e olharem-se nos olhos por um segundo.

A tarde é íntima;

em dança silenciosa,

fazem-se e desfazem-se as distâncias.


01 junho 2022

elodie petit

 

Il n’y a qu’une autoroute qui mène du Hlm a la maison individuelle

Les princes sacrifiées quittent les banlieues pour offrir autre chose à leurs enfants – une maison confortable entourée de maisons moches et construites avec les mêmes matériaux pauvres que leurs tours en toc.

HLM est une adolescente calme et sûre d’elle. Elle conduit un scooter sur les routes brumeuses de province. Elle fume beaucoup de pétards et porte des pantalons trois fois trop larges pour elle.

Elle découvre l’alcool en même temps qu’elle découvre le sexe. Ce qui lui importe c’est d’être toujours capable de faire les mêmes choses que les garçons – boire tout ce qui passe, baiser tout ce qui vient, jurer. Elle roule des trois feuilles pour faire des aquas dans la voiture de son pote. Elle attend beaucoup de la vie. HLM ne sait pas trop ce qu’elle veut faire, à part boire à outrance et baiser. Baiser cette société et toutes celles qui vivent dedans.

Elle commence à fumer des paquets de dix cigarettes Camel qu’elle achète en francs. Elle boit des Heineken tièdes devant la grille du collège et la proviseure lui dit que c’est moche. Elle fait pas ça pour que ce soit beau.

Un garçon met sa bouche autour de son sexe. Il a un piercing à l’arcade. Il a quitté l’école et il fait du skate. Son jean est déchiré et ses fringues sont d’une propreté douteuse. HLM n’a jamais aimé les gentes trop propres.


Só há uma auto-estrada do quarto à casa própria

Os príncipes sacrificados deixam os subúrbios para oferecer outra coisa aos filhos - uma casa confortável rodeada de casas feias e construídas com os mesmos materiais pobres que dos seus tic-tocs.

HLM é uma adolescente calma e segura de si própria. Ela conduz uma scooter pelas estradas brumosas da província. Ela fuma um monte de charutos e usa calças três vezes maiores para ela.

Ela descobre o álcool ao mesmo tempo que descobre o sexo. O que lhe interessa é ser sempre capaz de fazer as mesmas coisas que os rapazes - beber tudo o que está, foder tudo o que vem, jurar. Ela embrulha três folhas para fazer aquas no carro de seu amigo. Ela espera muito da vida. A HLM não sabe bem o que quer fazer, a não ser beber e foder. Foder esta sociedade e todas as que vivem nela.

Começa a fumar maços de dez cigarros Camel que compra em francos. Bebe umas Heineken mornas diante das grades do colégio e a diretora diz-lhe que isso é feio. Ela não faz isso para que seja belo.

Um rapaz deposita a boca à volta do seu sexo. Ele tem um piercing na arcada. Ele deixou a escola e faz skate. As calças estão rasgadas e as roupas estão impregnadas de uma limpeza duvidosa. HLM nunca gostou de pessoas demasiado limpas.


31 maio 2022

mireille gansel

 

il y a des maisons

qui sont un havre


une manière de poser une pomme

sur une assiette avec un couteau


quelques fleurs au bord de la nuit


offrir un verre d’eau


ne pas poser de question


franchir le seuil

ne pas être un étranger



há casas

que são um refúgio


uma forma de colocar uma maçã

num prato com uma faca


algumas flores à margem da noite


oferecer um copo de água


não fazer perguntas


atravessar o umbral

não ser um estranho


30 maio 2022

natacha batlle santana

 

Calcinada


Sobre un cuervo de papel en el nervio del ojo

la oscuridad alzó sus alas de nieve

tintado por las hojas podridas del cedro.

Me fumo la última ceniza de tu espalda

me enredo a un hilo de saliva

para no perder el rastro entre el carbón

y la extensión de la duda…

Entre la noche y el día

hay una herida abierta por donde la mano pasa

y desteje un alambre de espinas.

La media noche no es más

que media naranja pudriéndose en la boca de la llama

yo me escapo del amanecer

para lamer el carbón hasta tiznarme la lengua

y amanezco cada vez que el sol se eleva

como un blanco perfecto ante el día

que me deja en evidencia...

Calcinada.



Calcinada


Sobre um corvo de papel no nervo do olho

a escuridão levantou suas asas de neve

tingida pelas folhas podres do cedro.

Fumo as últimas cinzas das tuas costas

enredo-me num fio de saliva

para não perder o rastro entre o carvão

e a extensão da dúvida...


Entre a noite e o dia

há uma ferida aberta por onde a mão passa

e remove um arame farpado.


A meia-noite mais não é

que meia laranja apodrecendo na boca da chama

escapo do amanhecer

para lamber o carvão até tingir a língua

e amanheco cada vez que o sol se levanta

como um alvo perfeito para o dia

que me deixa em evidência...

Calcinada.


29 maio 2022

francisca aninat

 

Monte Aranda

En el momento antes de dormirme aparecen los nombres que olvido. No los conozco, entonces decido levantarme. El pasillo está oscuro, murmullo mi nombre, para ver si ellos igualmente se nombran, pero entiendo que persisten en su único tiempo y soy yo quien comprende sus cuerpos. Se entibian donde no hay más agua, en las grietas de polvo, en Tilam, Monte Aranda y donde los árboles verdes se coronan para esconder sus tierras, donde sus cuerpos ágiles pasan de un lugar a otro.

Una vez como tantas, elevados sin carne, me dijiste: qué rojo más vivo, este es un muerto al que recuerdo. Yo me defiendo, me doy cuenta de que ese tono que llevan no son apariencias, sino el rojo que yo respiro y que tú reconoces, intenso y sin cuerpo, delgado en sus movimientos. Dicen, aquí hay una aguada traposa –la sequía del invierno pasado. En Monte Aranda siguen buscando sus cuerpos, ayer te dijeron, los vecinos sacaron los rojos de sus manteles, afloraron sus casas con tonos violetas para dejarlos a un lado. Juntaron en las esquinas los rojizos de tazas, libros y vientres. Y en eso, tú y yo los tenemos en nuestras manos, apretados para saber quiénes son, hace días dejaron a los animales sin agua, a los eucaliptos sin sus aromas e inundaron las calles de un liquen pedregoso para alejarnos de nuestras tierras. No veo los rojos como lo hacía antes. El atardecer es una advertencia, un musgo que aflora para enrostrarnos que los rojos serán la siguiente camanchaca costera de estos pueblos que alguna vez visitamos.



Monte Aranda

No momento antes de adormecer aparecem os nomes que esqueço. Não os conheço, então decido por-me a pé. O corredor está escuro, murmuro o meu nome, para ver se eles igualmente se nomeiam, mas percebo que persistem no seu único tempo e sou eu quem compreende os seus corpos. Aquecem-se onde não há mais água, nas gretas de poeira, em Tilam, Monte Aranda e onde as árvores verdes estão coroadas para esconder as suas terras, onde os seus corpos ágeis passam de um lugar para outro.

Uma vez como tantas, elevados sem carne, disse-me: que vermelho mais vivo, este é um morto de que me lembro. Defendo-me, dou conta de que esse tisne que transportam não são aparências, mas o vermelho que eu respiro e que tu reconheces, intenso e sem corpo, delgado nos seus movimentos. Dizem, aqui há uma aguada mal falante -a seca do inverno passado. Em Monte Aranda continuam à procura dos seus corpos, disseram-te ontem, os vizinhos tiraram os vermelhos das suas mantas, floraram as suas casas de tons violetas para os deixar de lado. Juntaram nas esquinas os avermelhados de taças, livros e ventres. E nisso, tu e eu temo-los nas nossas mãos, apertados para saber quem são, há dias deixaram os animais sem água, os eucaliptos sem os seus aromas e inundaram as ruas de um líquen pedregoso para nos afastar das nossas terras. Não vejo os vermelhos como antes. O entardecer é um aviso, um musgo que aflora para nos fazer crer que os vermelhos serão a próxima paisagem costeira destes povos que alguma vez visitamos.


28 maio 2022

gabriela kizer

 

Puerto azul


Ustedes se escondían tras las piedras del malecón.

Tú eras rubia, acaso lo seas todavía.


Ustedes caminaban de noche y de día tomados de las manos.

Ustedes sonreían sobre granizados de fruta

y correteaban como niños a la orilla del mar.


Era el tiempo de ocultar cigarrillos

en los resquicios de una pared precisa.


¿Hasta dónde llegaba el aterrado asombro?

¿Hasta dónde la delicia de las manos ya sueltas?

¿Hasta dónde el sol, el musgo, el choque de las olas,

las voces lejanas, el gesto repetido del cangrejo?


Yo lo soñaba.

Punto por punto lo soñaba.

Pero no sé qué soñaba.


Mi placer está hecho de esa incógnita.




Porto azul


Vocês escondiam-se atrás das pedras do paredão.

Tu eras loira, talvez ainda o sejas.


Vocês andavam de noite e de dia de mãos dadas.

Vocês sorriam com os granizados de fruta

e corriam como crianças à beira-mar.


Era altura de esconder cigarros

nas aberturas de uma parede precisa.


Até onde chegava o aterrado assombro?

Até onde a delícia das mãos já soltas?

Até onde o sol, o musgo, o choque das ondas,

as vozes distantes, o gesto repetido do caranguejo?


Eu sonhava.

Ponto por ponto sonhava.

Mas não sei o que sonhava.


O meu prazer faz-se dessa incógnita.




Nochebuena


Le he dado vino a los gatos

y han olvidado que no deben arremeter

contra la jaula de los pájaros.


Le he puesto vino a los pájaros

para dejar de escuchar al miedo revoloteando,

para que, si no tienen suerte, la zarpa los agarre dormidos.


Le he puesto una manta a la jaula de los pájaros

para atenuar el asedio de los felinos.

Le he dicho a éstos que no es noche para cazar.


He pensado que en otras condiciones

la tarde se iría sin la sensación de un hueco apretado al estómago.


He descubierto que en ciertas celebraciones

mi alma se descuelga,

herida por algún motivo menor que el de la muerte,

pero motivo al fin.


He imaginado todos los brindis que no he podido hacer

por el cansancio de levantar la misma copa.


He recordado

que en estas fechas siempre he querido ser otra persona

donde quiera que esté y en la circunstancia en que me halle,

que la soledad

también ha sido hecha para estar a gusto

en nuestro disgusto más íntimo.



Consuada


Dei vinho aos gatos

esqueceram-se que não devem atirar-se

contra a gaiola dos pássaros.


Pus vinho aos pássaros

para deixar de escutar o medo

para que, caso não tenham sorte, a garra os apanhe a dormir.


Pus uma manta na gaiola dos pássaros

para atenuar o assédio dos felinos.

Disse a estes últimos que não era noite para caçar.


Pensei que noutras condições

a tarde se iria sem a sensação de um buraco apertado no estômago.


Descobri que em certas celebrações

a minha alma desprende-se

ferida por algum motivo mais pequeno que o da morte,

mas motivo por fim.


Imaginei todos os brindes que não pude fazer

pelo cansaço de levantar o mesmo copo.


Lembrei-me

que nesta data sempre quis ser outra pessoa

onde quer que esteja e na circunstância em que me encontre,

que a solidão

também foi feita para estar a gosto

no nosso desgosto mais íntimo



Poética

I

No tiramos nuestro cuerpo por la ventana.

No abrimos huecos en algún pedazo de tierra húmeda

para que nuestros amigos fueran a visitarnos.

No pedimos que nos sembraran flores encima.


Hemos visto caer sobre nosotros la modorra entera del dolor

y ni siquiera podemos decir que lo conocemos.

Hemos tratado de desperezarnos y de agarrar en el aire

una libélula: la flor prensada o podrida dentro del sueño.

Hemos besado su resequedad y sus larvas.

Hemos sentido en el sabor del barro, la mies

y aunque el grano fuese duro, inmasticable,

hemos aprendido a molerlo con los dientes.


¿Pero qué haremos ahora?

¿Qué sombrero le pondremos a esta tristeza de gaucho

solitario y ebrio?, ¿qué llanuras le daremos para que ande?,

¿qué oasis y qué cactus cuando precise recostarse

o apurar las espuelas, el puñal

para atrapar el tono que fuese necesario?


¿Recuerdas? Conocimos a un hombre

que fingía ataques de epilepsia en distintas esquinas de esta ciudad.

Cada cierto tiempo volvía a ponerse en nuestro camino.

Tirado en alguna acera,

lo veíamos bañado de sudor, con la mano en el corazón

y nos confundíamos nuevamente con espanto.

¿Y qué haremos ahora?

¿Qué le diremos a este sujeto que nos ha estafado?,

¿qué imagen suya pegaremos en el álbum de cromos superpuestos

para que no se nos confunda la memoria?


Para que no se nos olvide tampoco

la lentitud de aquel recogedor de latas

que casi de pie y a lo largo de cien segundos

atravesó la avenida principal

con luz roja para peatones

sin que ningún conductor gritara nada,

sin que ningún nuevo mitólogo afirmara

que así era como Atlas cargaba el mundo.


¿Y qué haremos en este mundo?

Qué cargamento de latas ganará algún valor de cambio

si no hemos caminado hasta el medio de la calle

para cargar y poner a salvo a un gato muerto,

si hemos visto a la amiga auscultar el corazón del animal

y mover el cuerpo, acariciarlo,

con una ternura que nos hizo avergonzar.

¿Y dónde buscaremos la cajita de cartón

en la que pueda caber esta vergüenza,

esa cara de gato atropellado

a la medida de un camión de basura?


No, no seguiremos buscando en el estiércol

la medida exacta de alguna frase inusitada.

No hallaremos nuevos ritmos en la quinta pata del gato

ni imitaremos a los hombres de manos enguantadas

que hay detrás de cada camión de basura.

Rasgaremos nuestras camisas, si hace falta,

nos sentaremos siete días en el suelo

y guardaremos el más rígido luto por aquello que importa

y que cae y que fracasa siempre.

Pero no quedará enterrado el corazón.

Tampoco lo congelaremos para futuros más desoladores aún

o sorprendentemente magníficos.


De los barcos que pasan,

hemos conocido ya la estela grabada sobre los huesos,

hemos entendido que nadie nos ha salvado de nada.

Pero no seremos los cronistas del desconsuelo.

No lo seremos.



Poética

I

Não atiramos o nosso corpo pela janela.

Não abrimos buracos num pedaço de terra húmida

para os nossos amigos nos visitarem.

Não pedimos para semearem flores em cima de nós.


Temos visto cair em nós a modorra inteira da dor

e nem sequer podemos dizer que a conhecemos.

Andámos a contorcer-nos e a apanhar no ar

uma libélula: a flor prensada ou apodrecida dentro do sonho.

Beijámos a sua secura e as suas larvas.

Sentimos no sabor do barro, a messe

e embora o grão fosse duro, imastigável,

aprendemos a moê-lo com os dentes.


Mas que faremos agora?

Que chapéu poremos a esta tristeza de gaúcho

solitário e ébrio? Que planícies lhe daremos para que ande?

Qual oásis, qual cacto quando precisar de descansar

ou apurar as esporas, o punhal

para apanhar o tom que seja necessário?


Lembras-te? Conhecemos um homem

que fingia ataques de epilepsia em várias esquinas desta cidade.

De tempos a tempos voltava a por-se no nosso caminho.

Estendido nalguma vala,

víamo-lo banhado em suor com a mão no coração

e ficávamos confusos de novo com espanto.

E que faremos agora?

Que diremos a esta criatura que nos burlou?

Que imagem sua colaremos no álbum de cromos sobrepostos

para não confundirmos a memória?


Para que não se nos esqueça sequer

a lentidão daquele apanhador de latas

que quase de pé e ao longo de cem segundos

atravessou a avenida principal

sem que nenhum condutor gritasse,

sem que nenhum novo mitólogo dissesse

que assim era como Atlas carregava o mundo.


E que faremos neste mundo?

Que carregamento de latas alcançará um valor de câmbio

se não caminhámos até ao meio da rua

para carregar e por a salvo um gato morto,

se vimos a amiga ascultar o coração do animal

e mover o seu corpo, acariciá-lo,

com uma ternura que nos fez envergonhar.

E onde procuraremos a caixa de cartão

onde possa caber esta vergonha,

essa cara de gato atropelado

à medida de um camião de lixo?


Não, não continuaremos a procurar no esterco

a medida exata de uma frase inusitada.

Não encontraremos novos ritmos na quinta pata do gato

nem imitaremos os homens de mãos enluvadas

que estão atrás de qualquer camião de lixo

Rasgaremos as nossas camisas, se for preciso,

sentar-nos-emos sete dias no chão

e guardaremos o mais rígido luto por aquilo que importa

e cai e fracassa sempre.

Mas não ficará enterrado o coração.

Tão pouco o congelaremos para futuros mais desoladores ainda

ou surpreendentemente magníficos.


Dos barcos que passam

conhecemos já a estrela gravada nos ossos

entendemos que ninguém nos salvou de nada.

Mas não seremos os cronistas do desconsolo.

Não seremos.